As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
– Luís de Camões[1]

inda nos dias de hoje muito se discute sobre como se deram as relações entre índios e portugueses no início da nossa história, e esta aponta algumas questões que normalmente são esquecidas pela narrativa que predomina nos dias de hoje, a qual diz que o índio só serviu como instrumento de trabalho e que foi explorado até as últimas conseqüências com o consentimento geral de que, por ser uma raça inferior, os nativos não só poderiam, mas deveriam ser subjugados.
Faz-se necessário esclarecer que não é aceitável negar que a exploração desses povos foi um fato lamentavelmente recorrente durante o período colonial, sobretudo no início do estabelecimento dos colonos. O que pretendo esclarecer aqui é o papel do governo português e da Igreja nesse processo, que, para contragosto dos adeptos da narrativa predominante, não foi de suporte, mas sim de combate.
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.[2]
Quando lemos a Certidão de Nascimento do Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha, vemos a seguinte proposição: “[…] o melhor fruto que desta pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”.[3] Em uma avaliação simples mas sincera, já poderíamos perceber daí que, mesmo que de primeiro momento, houve sim uma boa intenção dos portugueses para com os nativos. Muitos optam por enxergar o desejo do português de converter o índio e de levá-lo a civilização como uma afronta à sua liberdade – liberdade que, vale ressaltar, a Igreja Católica sempre defendeu em documentos oficiais –, mas se considerarmos que a fé, para o colonizador, era o bem maior que possuíam e nem ouro nem prata valiam a salvação da alma, esse desejo deixa de parecer algo tão perverso e se mostra até nobre e altruísta.
Em uma sexta-feira, 1º de Maio, houve a primeira missa no Brasil, realizada pelo Padre Frei Henrique, e chama a atenção o que Pero Vaz relata em sua carta sobre o episódio: acompanhando a procissão, que procurava um bom lugar para firmar a grande cruz de madeira e realizar a missa, estavam cerca de cinquenta ou sessenta deles, e a iniciando os nativos não só assistiam como participavam, imitando os atos dos devotos durante todo o tempo em que se davam os ritos, ora ajoelhando-se, ora levantando-se, ora apontando aos céus, etc. Caminha até diz ao rei em sua carta que, devido a inocência dos nativos, não tinha dúvidas de que logo que pudesse haver comunicação entre eles, a conversão seria imediata, pois não aparentavam possuir crença ou algo parecido. Advertia também, como já ressaltado, ao rei que esta deveria ser a principal preocupação dele: levar a salvação àquela gente. [4]
Nos primeiros anos o convívio seria amistoso entre ambos, posteriormente o português passaria a pagar o índio com bugigangas pelos seus serviços – evidentemente que a troca foi menos simplória, pois o português possui coisas que eram novidades para os índios (armas de ferro, por exemplo) e que, por isso, aceitavam de bom grado –, até que o nativo começasse a ser comercializado.[5]
A resposta da Igreja vem assim que os primeiros escravos começam a chegar na Europa. Em 1537 duas bulas são lançadas pelo papa Paulo III: Veritas Ipsa, que condenava o ato dizendo que o índio era racional, livre por natureza e não deveria ser escravizado; e a outra, intitulada Sublimus Dei, que chama muito a atenção por estabelecer que o índio deveria ser livre mesmo que não professasse a fé em Jesus Cristo. O papel da religião, representada principalmente pelos jesuítas, é muito evidente na figura do Padre Antônio Vieira.
Hernâni Donato, em seu livro Brasil 5 Séculos, afirma categoricamente que nem papa e nem o rei sustentaram a escravidão. O rei João III (1502-1557) foi bem claro com Tomé de Sousa, primeiro Governador-Geral do Brasil, quando disse que o gentio deveria ser bem tratado e que quem fosse pego escravizando-o, seria condenado à pena de morte. ”D. Sebastião, em carta régia de 1566 tentou quebrar a fúria da caçada ao homem americano. Em 1570 Lisboa emitiu a lei que declarava livres os aborígenes”. Filipe I de Portugal e II da Espanha (1527-1598) proibiu o apresamento de índios e definiu que somente se aceitaria a guerra contra o nativo se esta fosse declarada pelo próprio rei. Donato ainda afirma: ”Faça-se justiça: os reis portugueses tentaram”.[6]
O que acabaria acontecendo é que, como atesta Auguste de Saint-Hillaire[7] e tantos outros, os colonos frequentemente achariam jeitos de burlar essas leis, criando muitas vezes um conflito que veríamos entre religiosos/governo e colonizados x colonos. Conflito evidente que nos confirma João Camilo de Oliveira Torres: ”Desde o período colonial, é visível o empenho da metrópole em defender os moradores contra o arbítrio das autoridades locais, em abrigá-los na sua ‘vida, honra e fazenda’, como disse frei Rafael de Jesus, o que equivalia a assegurá-los nas suas liberdades civis”.[8]
Há algum tempo essas informações eram de conhecimento comum entre os historiadores (ao menos os mais antigos), e se coloco um ou outro autor para atestar isto é justamente para evidenciar que essas coisas não são desconhecidas historicamente, só são frequentemente esquecidas. Cabe a nós pensarmos o porquê. Por que colocar o Descobrimento sempre como uma tragédia? Por que querer colocar o Cristianismo como pilar de um suposto processo de exploração e destruição de diferentes povos se, buscando nas fontes, a história nos mostra outra coisa? As respostas existem e até são evidentes, basta que as procuremos.
NOTAS:
[1] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Canto I, verso I.
[2] Ibidem. Canto I, verso II.
[3] CALMON, Pedro, História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1959. Vol. 1.
[4] Ibidem.
[5] Não é a intenção aqui desconsiderar as diferentes relações existentes entre o colonizador e o nativo, já que estes eram tão diferentes uns dos outros como pode-se supor, havendo dos mais pacíficos aos mais radicais, etc. A complexidade das relações entre nativos e colonos/colonizadores é muito grande para que simplesmente os encaixemos em grupos diferentes e opostos. Em alguns casos, tribos se aliaram aos estrangeiros, em outros os enfrentaram, caçaram ou mesmo os devoraram. Se em muitos casos os jesuítas e mesmo pessoas comuns conseguiriam conviver nas tribos tranquilamente, há relatos, ainda no século XIX, de tribos que aterrorizavam o sertão goiano e mesmo impediam a navegação nos principais rios da antiga província.
[6] DONATO, Hernâni. Brasil 5 Séculos. 2ª Edição. São Paulo: Green Forest do Brasil Editora, 2000.
[7] SAINT-HILLAIRE, Auguste de, Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela província de Goyaz. São Paulo: Companhia editora nacional, 1937. Tomo I.
[8] TORRES, João Camilo de Oliveira. Estratificação Social no Brasil. Brasília: Edições Câmara, 2018. p. 101.